sexta-feira, abril 30, 2010

quarta-feira, abril 21, 2010

A caderneta




Depois de separados, eles estabeleceram um estranho mecanismo de comunicação indireta. A medida era necessária para impor a distância que a razão de ambos desejava manter. Ele queria esquecê-la. E ela, dele não queria lembrar.

Foi dessa forma que a caderneta da mercearia virou a interlocutora dos últimos suspiros daquele romance tão fugaz quanto intenso vivido por Deoclésia e Teobaldo.

Como é comum após a separação – ocorrida de forma inarrável, já que cada um dos envolvidos tem sua própria versão para o fato — Teobaldo embebedou-se sentando no banco de madeira da mercearia do bairro onde viveram felizes por tão pouco tempo.

Os pensamentos, intercalados por angústia, ódio e amor, eram embalados pela trilha sonora da Rádio Nacional. Impulsionado pelo sucesso do momento, Teobaldo decidiu que era hora de partir. Pediu ao dono do bar a caderneta onde há dez anos assinava suas despesas, pagas sempre no dia 11 de cada mês.

Naquele dia, no entanto, as folhas apertadas do caderno abrigaram parte de sua dor. De posse da caderneta de capa azul e folhas amareladas (provavelmente pelas frituras vendidas no local), não hesitou. Como num desabafo , traçou algumas letras tortas que logo revelaram o primeiro trecho de Renúncia, sucesso de Nelson Gonçalves na Rádio Nacional:

“Hoje não existe nada mais entre nós
Somos duas almas que se devem separar
O meu coração vive chorando e minha voz
Já sofremos tanto que é melhor renunciar”

Ao terminar a estrofe, sentia-se um pouco mais aliviado. A atitude tomada por impulso serviu-lhe “como pinça para retirada de uma espinha de um peixe da garganta”, conforme pensou tal metáfora.

Ele sabia que, antes da partida, Deoclésia ainda passaria uns dias na casa da prima Laurinda, moradora da parte mais alta do bairro. E, apesar da distância, não haveria outra mercearia nas redondezas. Desejou ter sua ação (um tanto rebelde, admitia) revelada à mulher que, por ele, fora tão amada. Era um modo de atingi-la. E de compartilhar a sua dor.

Deoclésia partiria por “motivo nobre”. Era essa expressão que costumava usar quando lhe perguntavam o porquê de sua partida. Caçula de nove irmãs, era a única disposta a cuidar do pai enfermo no interior do Alagoas. Não que fosse benevolente a esse ponto. Católica fervorosa, ela temia que o abandono do pai a levasse ao inferno do Dia do Juízo Final. Assim, de posse de sua bondade transviada, Deoclésia deixaria o Rio de Janeiro e, com ele, Teobaldo.

Os dois não cabiam no mesmo mundo, pensava ela. E não era a fé que os separava. Todos os anos, ele ia à Aparecida do Norte pagar promessa à padroeira. Os motivos de deixá-lo caberiam na mesma folha que ele poderia escrever os defeitos dela. "Cada um com a sua versão", pensava ela.

Por incontáveis motivos, Deoclésia sofria por deixar a capital do Brasil. E embora não admitisse, tinha mais temor de perder os capítulos da novela “Em busca da felicidade”, transmitida pela Rádio Nacional, do que penar pela possível perda da programação musical carioca.

Aprendera a gostar de música tardiamente. Foi pelo costume de Teobaldo de usar versos compostos por terceiros para declarar seu amor, que começou a copiar os versos dos cantores da Rádio Nacional em um caderno travestido de diário. A prática, entretanto, tinha um ritual. Anotava somente trechos otimistas das músicas pois temia que as palavras de dor trouxessem para dentro da sua casa as histórias narradas pelos cantores.

Naquele dia, porém, Deoclésia escreveria sua primeira estrofe pessimista sobre o amor. Na volta do trem, decidiu ir à mercearia comprar uma coca-cola, que chegara ao Brasil naquele ano. Lembrou-se da dívida com o dono da venda e pediu para conferir os valores somados antes de quitar o débito antes de sua partida.

Subitamente, uma mistura de sensações tomaram seu corpo ao ler as últimas anotações feitas no pequeno caderno, nas folhas que deveriam ser exclusivas para o registro de suas pendências. Na folha onde constava seu nome acima e algumas pequenas despesas, havia quatro versos escritos. Mesmo disforme, pode reconhecer aquela letra. Eram de Teobaldo.

Um nó subiu-lhe à garganta e sentiu que deveria guardar as lágrimas. Achou melhor não questionar nada ao dono do comércio, embora as perguntas viessem à mente. Teria ele estado no lugar há pouco? Deveria ela partir correndo, mediante a possível volta repentina de Teobaldo?

Respirou fundo, na tentativa de afugentar a dor, e virou as páginas até chegar ao espaço destinado à marcação das despesas de Teobaldo. Lá, grafou 'sua resposta' em letras redondas e tão grandes que chegavam a agredir as linhas-guia:

“A minha renúncia enche-me a alma e o coração de tédio
A tua renúncia dá-me um desgosto que não tem remédio
Amar é viver, é um doce prazer, embriagador e vulgar
Dificil no amor é saber renunciar”

Poucos dias depois, as dívidas da caderneta foram quitatas por ambos, mas a dor e o amor tardaram a brandar. Nunca mais se viram, nem ouviram um do outro falar.
E assim, através da dor cantada por Nelson Rodrigues e em meio as contas das despesas impostas pelo cotidiano, eles renunciaram.

Por Stela Guimarães.

______________________________________________

Versão concluída às 0h51 de 21 de abril, não editada ou revisada.