quinta-feira, janeiro 17, 2013

Jogaram lodo no Carnaval luizense



O anúncio do patrocínio de uma grande cervejaria e a consequente intervenção da empresa no Carnaval de São Luiz do Paraitinga, a 150 Km de São Paulo, atingiu os amantes da cultura local com uma ferocidade comparável à enchente que assolou o município valeparaibano em 2010. Fomos pegos pela notícia da implantação de um camarote da cervejaria e, mais recentemente, pelo anúncio da programação musical com nomes como “Bonde do Tigrão”.

Como as águas do Rio Paraitinga que subiram lentamente naquela virada do ano para 2010, fomos sendo inundados por uma série de notícias sobre os rumos da festa para este ano. A diferença é que, desta vez, não houve equipes de rafting para nos salvar do impacto causado por essa inundação de incoerências administrativas.

Estamos sendo tragados pelas águas barrentas da má administração, da ingerência política e econômica sobre a cultura de um povo.

Pelo coletivo “nós” refiro-me aos milhares de admiradores da cultura luizense que, como eu, encontraram no Carnaval de São Luiz do Paraitinga um refúgio para as mazelas do mundo, um tempo de ser feliz independentemente de patrocínio, de abadás ou de bundas de fora.

Em sua defesa, a prefeitura tem alegado que os recursos na ordem de R$ 3 milhões ajudariam na revitalização da cidade, mas ignoram o impacto que a medida mercadológica pode causar à festa. O lodo das inúmeras inundações parece ter cegado os governantes locais. Sim, a Prefeitura de São Luiz do Paraitinga está cega.

No topo de sua soberba, o poder público – em consonância com os interesses do mercado – ignora “os quês e quais e poréns” daquilo que justamente transforma o Carnaval de São Luiz do Paraitinga em uma manifestação única, calcada nas tradições da cultura caipira e da musicalidade que dela adveio. Esta mesma identidade da festa que a levou como destaque às páginas do The New York Times certamente atraiu a patrocinadora. Esta é a lógica do mercado. Mas R$ 3 milhões justificam colocar por água abaixo toda construção dessa tradição reinventado do Carnaval luizense?

Será que a prefeitura e a Ambev ignoram o histórico da festa, que começou no formato adotado até 2012, com a exclusividade do estilo das marchinhas, como uma resposta à uma reportagem da Rede Globo, com a qual os moradores e artistas se sentiram ofendidos em 1980?  

Até que ponto o poder público pode interferir nas manifestações culturais emergidas da população?
Será que sequer avaliaram os motivos pelos quais a festa atrai milhares de foliões ano a ano? 

Desconhecem que a apropriação simbólica daquilo que é inerente ao povo da cidade, como seu sotaque arrastado e sonoro, transposto às marchinhas, é um dos principais atrativos ao folião, interessado nesta aura lúdica e de túnel do tempo locais?

Será que não avaliam que estão desconstruindo o ethos cultural da cidade, cuja religiosidade e as festas pagãs se interlaçam, e formam um dos pilares da identidade de São Luiz, que nada têm em comum com o repertório musical proposto pela Ambev ou nas letras do Bonde do Tigrão?

O que atrai turistas a São Luiz, senão seus aspectos particulares como a capital das marchinhas e cidade do Saci, o autêntico "raloim" brasileiro? Não é também um erro estratégico desmontar essa identidade que é justamente o que sustenta o turismo local? É se for para a cultura luizense se transmutar um dia, que seja da mesma forma que ela surgiu: das massas, e não do poder hegemônico de uma cervejaria ou do Estado.
 
Não se trata de puritanismo, como a oposição aos fatos acima podem imaginar. Mas de preservar aquilo que torna São Luiz especial – sua gente, suas alegrias e suas tradições.


Se em 1920 se temia que o carnaval levasse ao nascimento de rabo e chifre, só posso preconizar que o padre Monsenhor Ignácio Gioia estava certo. Só mesmo a arte do coisa ruim pode justificar a mistura de estilos no Carnaval luizense.

Stela Guimarães é jornalista, nascida no Vale do Paraíba, mestre em Comunicação pela Escola Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) com a dissertação “Do rabo e chifre às marchinhas: como uma reportagem da Rede Globo interferiu na criação do Carnaval de São Luiz do Paraitinga (SP)”, defendida e publicada em 2011.

terça-feira, janeiro 15, 2013

Aquela banda nova e a panela usada




Ela se sentia feliz porque pensava ser sorte conhecer, no mesmo dia, uma banda nova, da qual tinha ficado imediatamente fã, e um filme bacana, apesar de tê-la feito chorar. Andava emotiva e insistia em dizer que isso era raro, embora quem a conheça saiba o quanto é fácil emocioná-la por razões diversas, alegria ou tristeza, música ou cinema.

Desde pequenininha, ela chorava muito. Um ralado na perna da irmã mais velha era o suficiente para fazê-la derramar baldes de lágrimas. A situação era irritante para quem via de fora – especialmente para a primogênita de seus pais, durona na queda e de pouco chororô. “Menina, pára de chorar que eu estou bem”, dizia sua irmã mais velha sem a agressividade que as palavras escritas aqui podem esconder.

Daí até chegar a sua idade atual ela chorou e chorou tantas vezes, por tombos alheios, finais de novela, meio de filmes, notas na escola e até na última Copa do Mundo. De tanto chorar, ela deveria admitir que seu lado direito do cérebro é muito mais faceiro ao vizinho de massa cinzenta. Mas isso, para ela, seria como encarar uma derrota. Sua personalidade colorida, porém emotiva, não poderia vencer este duelo.

Agora, sentada sozinha em sua cama, ela pensava se a habilidade de traçar estratégias havia mesmo sido derrotada pelo apego emocional. Estava feliz porque a banda era realmente boa e o filme recém-visto – e comprado no camelô - tinham lhe proporcionado. E há dois dias ela comprara um livro com o qual estava se divertindo muito. O segundo best seller de David Nicholls, o “novo” Nick Hornby.

O trabalho ia bem, obrigada, e o saldo na conta não estava muito a contento, mas o abono do meio do ano ia ser bom. Então não havia muito com que se preocupar. Estava saudável, apesar de alguns espirros e do cansaço da viagem do fim de semana. Havia feito hidratação no cabelo e suas unhas do pés estavam feitas. Em tese, tudo certo.

Mas aquele anúncio feito por ela no jornal, da vitrolinha que ele precisava vender antes de partir, parecia rodar em delay eterno. Um tormento besta, para que ela se lembrasse dele e daqueles dias bobos, despretensiosos e reconhecidos, a posteriori, como felizes. De repente, toda a cidade havia decidido comprar o item de coleção, embora ele tenha sido vendido há tempos. Trim, trim. Se o telefone tocava, ela já sabia – lá estaria um comprador atrasado.

Também subitamente pareceu-lhe muito maldoso os itens deixados por ele, para ela. Um prato, uma frigideira queimada  - para lhe lembrar do Sérgio Reis entoando a clássica ode às coroas – e até uma tampa de panela velha. “Presentes” bem intencionados que acabaram por lhe dar tristeza, não intencionalmente, ela sabia.

Ela não estava apaixonada, insistia em pensar e dizer (e estava convicta disso), mas sentia falta daquele “relacionamento com prazo de validade”. Ela gostava de se lembrar dele penteando os cabelos todos pra trás, como um velho pescador norte-americano, e ria ao pensar como detestava a coloração das lentes de seus óculos.

Por algumas vezes, sentiu melancolia ao olhar para um cantinho onde eles gostavam de ficar. Sentia falta de dormir com ele e de outras coisas mais advindas de tal proximidade. Em outras ocasiões, refletiu se deveria escrever sobre ele – porque essa coisa de transformar pessoas reais em pseudoficção só tinha lhe dado má sorte até agora. “Os homens ficam se sentindo os maiorais”, lembrou, mas sabia que essa melancolia e saudades pareciam só servir para que seu lado direito do cérebro transformasse tudo em palavras organizadas pelo seu lado esquerdo e virasse um conto bobo de quem sente falta de outrem.

Ele, que era notadamente mais pragmático, não seria convocado a conferir o texto no qual ela admitia como sua ausência era sentida. Ela preferia que eles ficassem leve, como eram, e tal leitura poderia causar nele uma má interpretação e afastá-lo ainda mais. Ela sabia que pouco a pouco seus contornos femininos iam sendo esquecidos pelo cotidiano, pelos caminhos que a vida ia seguir, e isso já estava acontecendo nele, ela sabia. Por sua vez, ele estava imortalizado naquele escrito no qual ela admitia dele gostar, assim como havia gostado tanto dessa banda nova e desse filme de hoje.