sábado, julho 30, 2016

Carta para o meu filho


Coragem, menino, é o que você vai precisar. Para provar aos amigos que não é sinônimo de macheza entrar no vira-vira. Sinônimo de personalidade é tomar a decisão é que você quiser. Inclusive a de postergar para a vida adulta a primeira prova de uma bebida alcóolica para poder, sem culpa, tomar um bom vinho num jantar com os amigos.
Coragem, moleque, para não entrar na onda do senso comum e sair distribuindo cantada para toda garota bonita que você vir a desejar. Para não magoar. Para ver a beleza nas minúcias, na delicadeza além do efeito do Photoshop. Nos defeitos que diferem uma das outras.
Coragem para dizer a elas que não precisam de maquiagem ou como elas ficam lindas se quiserem usá-las - mesmo que alguém diga odiar menina com "make carregado" ou "de cara limpa". Tanto faz. Porque o corpo é DELAS e o controle sobre eles também.
Coragem para segurar seus instintos porque você não é guiado pelo seu sistema límbico - você é um ser evoluído, inteligente, e não como andam dizendo por aí. Essa bobageira de "homem precisa se aliviar" ou "é de é tudo assim mesmo", "homem traí mesmo", "mexe com mulher na rua" ou qualquer outro blá, blá, blá, blá destes aí. Coragem para não fazer fiu-fiu na rua e advertir seus amigos sobre a babaquice do ato. Se algumas gostam, pois é, pesquisas indicaram ser uma minoria. E a gente não é roleta-russa.
Coragem para explicar a eles, seus "parças", como esse ato impede que usufruamos do espaço público da mesma maneira que vocês, meninos e homens. Como isso nos dá medo e como o estupro é uma ameaça constante em nossas vidas. Infelizmente.
Coragem para entender que é difícil mesmo este processo da paquera. Como vou saber, mãe, se estou passando do ponto? Você saberá, porque não é errado dar suas investidas. A reciprocidade é natural: há olhares, toques, risinhos. Você vai ver. Um dia vai rolar.
Coragem para entender que é mentira máxima, na verdade, tão mínima, e tantas vezes ouvida por mim ao longo da minha vida - "quando elas dizem não querem dizer sim". Não. Elas estão dizendo NÃO. E você não é assim.
Eu sei que você romantiza com aquela menina porque também tem vontade do toque terno, do olhar amoroso, apesar dos hormônios estarem, sim, efervescentes. Assim como estão nela - embora culturalmente saiba que elas não foram ensinadas a se tocar como vocês e seus amigos foram pelos pais, irmãos, amigos. Idealizar este encontro não é ser menos homem. É ser gente. Humano, como nós. E só assim queremos ser vistas - de igual para igual, humanas.
Coragem para entender que o machismo é uma cultura opressiva - muitas e muitas vezes mais para elas. Mas coragem para compreender que o machismo é uma cultura também opressiva para você, que não quer beber, que quer transar com amor, que um dia vai querer uma namorada para amar e ser amado, que uma hora vai querer tomar um trago (mas não agora), que admira as meninas bonitas mas não quer classificá-las conforme uma escala de beleza estabelecida por padrões capazes de oprimir, subjugar, matar.
Coragem para admitir-se como um ser humano completo, como você é. Especial, divertido, inteligente e empático aos sofrimentos do mundo, das minorias, dos miseráveis. E aos nossos, das mulheres. Suas amigas, futuras namoradas, suas primas, suas tias, sua mãe.

quinta-feira, outubro 23, 2014

Um só voto basta ao senhor José

Senhor José com sua carta que ele queria ver publicada em algum lugar.


José Pereira Lopes é fotógrafo, tem 75 anos e só quer ser ouvido. Morador de Foz do Iguaçu, ele buscava nesta quinta-feira, antevéspera da eleição presidencial, algum veículo de imprensa que publicasse seu desabafo e clamor.

Revoltado com o tom de Aécio Neves no debate dos presidenciáveis no dia 16 de outubro, senhor José lançou mão de papel e caneta e escreveu um manifesto de seis páginas manuscritas.

Como queria dar publicidade às suas ideias, procurou alguém para digitar suas palavras. "Não encontrei ninguém, até que consegui um pra fazer esse favor", disse. Ele conta ter pagado ao digitador a importância de R$ 100. Fico chocada: "mas cem reais por essas páginas é caro demais", digo. Ele responde: "Eu que ofereci isso, porque nunca encostei num computador", justificou-se. "E conseguir um voto já valeu a pena", disse com a carta em punho, impressa em três folhas de sulfite, e na outra mão uma embalagem de filme de câmera. Dentro dela, um pendrive com a versão digital de seu desabafo.

No texto, ele contou um pouco de sua história e reclamou da agressividade do tucano no trato com a presidenta. Para ele, o candidato do PSDB foi agressivo e deselegante.

Na carta, ele também pede que os brasileiros - e mesmo os políticos - votem em Dilma. Senhor José acha que Lula foi um escolhido de Deus, porque melhorou a vida das pessoas, disse ele. Seu apreço pelo ex-presidente passou também para Dilma, para quem escreveu uma carta endereçada ao Palácio do Planalto.

Como resposta dessa, manuscrita, recebeu uma foto "autografada" da presidente. "Olha como ela é bonita", disse, puxando a imagem de dentro do envelope com o remetente da Presidência da República. "Sei que o autógrafo não é dela mesma, porque ela não tem tempo, mas é bom assim mesmo", completa.

Senhor José pede que eu leia a carta e publique em algum espaço, "nem que seja pra uma pessoa ler". "Não tem na internet algum lugar que a gente pesquise 'política' e aí aparece tudo"?, questiona-me.
Explico um pouco como funciona a internet, e do espaço que as redes sociais abriram para as pessoas se manifestarem, seja do lado que estiverem. Ele baixa a cabeça e reitera: "nunca usei essa coisa de computador". O fotógrafo questiona se podemos colocar no jornal corporativo e dou a negativa argumentando os quês e quais e poréns - de leis eleitorais à postura ética e tals.

Digo para José procurar o jornal local porque quem sabe lhe dão um espaço. Mas ele está sem condição para ir até o centro da cidade, tinha andado a tarde toda antes de chegar até nós. Cabisbaixo, senhor José lamenta porque a eleição é domingo e ele quer dar a sua opinião, "com a graça de Deus".

Ofereço-lhe, então, publicar eu mesma de forma independente do trabalho, fora do ambiente corporativo e do horário de serviço, ou de qualquer outro vínculo. Explico que também sou eleitora da Dilma e, embora possa não compactuar com todo o texto dele, também acho que essa é a melhor opção ao País.  Ele então topa fazer uma foto para atestar sua existência aos meus conhecidos que, eventualmente, lerão o seu texto.

"Mas quem vai ver?", pergunta, por fim. "Não sei, mas vamos torcer para que bastante gente", completo e conto-lhe que Dilma está à frente das pesquisas publicadas naquela hora, praticamente. Ele sorri, agradece e se despede, educadamente.

Abaixo, o texto de José, publicado na íntegra e sem edições.

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O original, manuscrito. 


"ATITUDE NEGATIVA DO SENHOR AÉCIO NEVES AO DENEGRIR A IMAGEM DE NOSSA PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF

Sou um cidadão brasileiro, com 75 anos exercendo ainda a profissão de fotógrafo. Moro em Foz do Iguaçu há 52 anos. Estive presente na  inauguração da Ponte da Amizade em 1965 onde estiveram presentes grandes autoridades, destacando-se o presidente do Paraguai, Alfredo Strossner, juntamente com o presidente do Brasil, Castelo Branco.

Tive a honra de ser o primeiro fotógrafo da Usina de Itaipu, contratado em 1975, cujo objetivo foi fotografar as obras da Usina para fins de relatórios de progresso.

Venceu nosso contrato em 1977 e fui convidado para fichar na Itaipu, recusei e ganhei uma licitação a qual me deu o direito de instalar um estúdio fotográfico, no centro comercial da Usina. 

Querido povo brasileiro, nosso país é um dos mais belos  do mundo e com  suas riquezas naturais.
Precisávamos de um presidente sério,  que apoiasse as necessidades dos cidadãos brasileiros menos favorecidos pela sorte.

Vira uma nova página pra nação brasileira quando o senhor LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA  ganha pra presidente da República do Brasil, sendo um dos mais  humilde líder da nação creio que foi determinado por Deus, assim como escolheu homens humildes para serem Seus discípulos e os capacitou para pregarem o Evangelho. Assim surgiu o presidente Lula com simplicidade e humildade para governar esta grande nação, nosso querido Brasil.

Houve um progresso em todas as áreas de desenvolvimento, inclusive com novas descobertas do pré-sal.

Uma das áreas de progresso foi na educação, dando oportunidade para os pobres estudarem em faculdades, onde que anteriormente só os ricos podiam; com a criação do ENEM, todos têm a mesma oportunidade.

Gostaria de destacar a Universidade UNILA, que integra alunos  oriundos de vários países vizinhos, através de um intercâmbio cultural.

Nosso querido país progrediu muito nesses 12 anos em que o PT governou. Se meus queridos irmãos eleitores quiserem o progresso do Brasil, então que o PT siga governando por muitos anos.
Se assim for teremos orgulho de dizer somos brasileiros. Já diz o velho ditado: "Time que está ganhando não se mexe". Se nosso país está em franco desenvolvimento, todo o político consciente apoie a nossa querida presidenta Dilma, para o bem de todos os brasileiros.

Eleitor amigo, Janio Quadros em sua campanha política, o símbolo era a vassoura, para varrer a sujeira do Brasil.  O que aconteceu?  E o caçador de Marajás, ex-presidente Collor de Melo?
Agora esse senhor Aécio Neves vem dizendo que vai mudar o Brasil,o Brasil não precisa de mudanças, mas precisa é de apoio a nossa querida presidenta Dilma 

Senhores políticos que apoiam o senhor Aécio Neves não querem o progresso de nossa nação. Achei muita falta de educação da parte do candidato a presidente Aécio Neves chamar nossa querida presidenta Dilma de mentirosa no debate do dia 16 de outubro.

Para mim foi uma grande falta de respeito, não só para com a presidenta, mas com todo o povo brasileiro. O senhor Aécio Neves diz que foi governador  por 8 anos em Minas Gerais e atualmente és aenador, por acaso não aprendeu que a pessoa que ostenta a faixa verde e amarela, nossa digníssima presidenta merece todo o respeito?

Todos nós podemos ver o caráter que o senhor Aécio Neves tem,é este o presidente que os senhores querem? Um representante que não tem respeito pela nossa presidenta?

Senhor Aécio Neves não afetasse a uma pessoa qualquer, mas sim a nossa presidenta Dilma. Se o senhor trata a presidenta assim com tanta falta de respeito, como nos tratará? Creio que a presidenta nunca foi tão humilhada perante o Brasil e o mundo.

Aprendi a nunca chamar uma pessoa de mentirosa, mas a dizer está faltando com a verdade. Querido povo brasileiro, não queiram para presidente uma pessoa com tanta falta de ética como o senhor Aécio Neves. Prova disso, perdeste em MINAS Gerais. Os mineiros são muito patriotas, se o senhor Aécio Neves fosse bom o povo mineiro teria  te apoiado.

Eleitor brasileiro vote na candidata à  presidente senhora Dilma, vamos reeleger uma pessoa digna e capaz de governar a nossa nação com uma sensibilidade fantástica para tratar com as pessoas. Se o Senhor Aécio trata assim a nossa presidenta Dilma como ele tratará você eleitor amigo? Se querem o progresso do nosso querido Brasil votem na candidata a presidente DILMA .Mostrem ao mundo que temos cultura e não aprovamos a falta de respeito com a nossa presidenta. Para o bem de todos os brasileiros e progresso de nossa nação votem na candidata à presidência senhora Dilma.

Abraços a todos os brasileiros que irão compreender essa humilde homenagem, desse fotógrafo que ama o Brasil. Lembro-me que meu primeiro voto foi para o senhor Juscelino . Aos meus 75 anos, nunca tinha visto um candidato tão agressivo como o senhor Aécio Neves. Que Deus tenha pena do senhor pela sua conduta. 

Eleitor amigo já viram o conto do bilhete premiado? Ao ver, o senhor Aécio Neves diz que vai mudar o Brasil se o senhor não sabe tratar uma dama como a nossa presidente Dilma? Como quer ser o nosso presidente? Que Deus não castigue o nosso povo com esse presidente, seria uma vergonha para todos nós tê-lo como nosso presidente representando o nosso querido povo brasileiro.

O Brasil gigante e belo precisa de um representante à sua altura, analisem que quem muito fala, pouco faz o verdadeiro mérito não se mostra deixa se ver. Parabéns candidata à presidência, até a vitória com fé em Deus.

Abraços a todos meus queridos irmãos brasileiros, a felicidade está em nossas mãos. Que Deus vos abençoe.  

Carinhosamente, JOSÉ PEREIRA LOPES"
 



quinta-feira, maio 08, 2014

De onde eu vim

Ana Maria, minha mãe, eu e vovó, em 2013
 

Minha avó Mariana nasceu há 84 anos em uma cidade pequena de Minas Gerais. Cinco anos depois, ela perdeu a mãe, de quem se lembra apenas pelos longos cabelos escuros caídos da mesa até o chão no dia de seu velório. Ela também não sabe a causa da morte de Rosalina, nome da minha bisavó. Nem sabe porque o pai a deixou com sua madrinha de batismo – dona de uma rica fazenda em Itanhandú (MG), em vez de cria-la com outros irmãos.

Uma vez, ela me disse sobre este episódio: a vida era dura naquele tempo, ele não tinha posses para cuidar de todos os filhos. Marianinha, alcunha apropriada à minha vozinha, cuja altura não excede 1,50 metros, se criou na fazenda, sem mãe, pai ou parentes de primeiro grau. Lá, ela foi mordida por um macaco que arrancou um pedacinho de sua mão – trauma levado para a vida inteira, assim como a mágoa de ter sido chamada de “Maria Mijona” por fazer xixi na cama até a adolescência (problema que eu também carreguei até meus 14 anos).

As crianças faziam fila atrás de Mariana porque a madrinha a mandava colocar o colchão no sol mesmo diante da criançada.

Naquela época, era chique estudar no Rio de Janeiro e era para lá onde iam os filhos naturais da dona da fazenda. Minha avó não foi para lá: na fazenda, cursou até a quarta série, fato que não a impediu de desenvolver uma habilidade tremenda com os números – comerciante na vida adulta, ao lado do meu avô, ela sempre foi boa de contas.

Dona Mariana me ajudava com as contas da escola, quando eu era criança e passava a maior parte da minha vida enrabichada na saia da minha vó. Foi assim que aprendi tantas histórias, como a do macaco, do xixi na cama, as lendas de assombração da época, os percalços pelos quais passava já mãe de quatro filhos com as incontáveis mudanças – de Minas para São Paulo, na capital de um bairro para outro e de lá para Jacareí (SP), onde eu nasci bem depois.

Minha avó não gosta de sítios e é um esforço para ela ficar mais de um dia na casa do seu filho mais velho, Edson, nascido no ano em que ela casou, aos 16 anos. Meu avô Acácio – cinco anos mais velho, era filho de empregada e tutor das crianças mais novas na fazenda. Há 20 anos, ele nos deixou vítima de um infarto fulminante, e Dona Mariana perdeu seu companheiro da vida toda.

Há algum tempo, pensava eu que sua vida era só de lutas e restrita a um mundo muito pequeno, girando em torno dos comércios pequenos da família – já encerrados – ou da criação dos quatro filhos, que lhe renderam sete netos e 11 bisnetos.

No último dia 30, Mariana Rosa Guimarães – minha vó e segunda mãe – fez aniversário. Liguei para parabenizá-la, já que moramos a 1.300 km de distância. Por telefone, perguntei: “vó, qual seu sonho? O que você quer fazer e ainda não fez?” Com sua voz fininha e em tom muito animado, ela me respondeu: "Nada. Só quero todos vocês felizes e com saúde. Tenho tudo".
Neste momento entendi que apesar de parecer tão poucas suas ambições, seu projeto de vida parece ter dado certo. Obrigada, vó. Nesta semana das mães, meu amor é para você.

Stela Guimarães é jornalista, mestre em Comunicação pela ECA-UPS e tem orgulho do seu sobrenome, herdado de seus avós maternos, Acácio e Mariana, a quem dedica esse texto.


Publicado originalmente na Gazeta do Iguaçu. http://www.gazeta.inf.br/pdf/p0705/#p=21

segunda-feira, março 24, 2014

Efeito Marquinho


Em meados dos anos de 1990, lembro-me que um dos sonhos comuns do brasileiro de classe média era viver nos Estados Unidos. Esta fixação pelos norte-americanos – já criticada por alguns setores da sociedade naquela época, com o slogan Fora FMI – era expressa nos desejos de alguns amigos de debutar com viagem à Disney e de consumir produtos da terra de Tio Sam, após um reaquecimento da economia brasileira.

À época, a sátira à adoração aos norte-americanos pelos brasileiros era tema de um dos quadros do programa de humor da rádio 89FM de São Paulo, “Os sobrinhos do Ataíde”, criado pelos jornalistas Paulo Bonfá, Marco Bianchi e Felipe Xavier. Nele, o personagem Marquinho tinha como bordão a frase “Os americanos são muuuuito melhores” ao se referir a qualquer coisa vinda da terra onde está Hollywood.


Passados vinte anos, os brasileiros mantêm a predileção pelos Estados Unidos. Enquanto o Ministério das Relações Exteriores estima 1.280.000 brasileiros residentes em todo os Estados Unidos, um estudo revelou o país de Obama como primeira opção de mudança para o exterior. A pesquisa foi feita pelo Instituto Ibope/Conecta, para a rádio CBN, e divulgada em dezembro de 2013.


Manifestante (?) no Brasil no ano passado. Uma imagem vale mais que mil words...
 


EUA foi citado como preferência de um a cada cinco brasileiros (19%), seguido do Canadá (17%) e Inglaterra (16%). Na lista dos dez mais, o “top ten”, em inglês, figura ainda Alemanha, Austrália, Itália, França, Espanha, Portugal e China, esta última, com 1% das intenções. 

Nenhum deles faz fronteira com o Brasil ou está na América do Sul, embora tenhamos no continente países com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais elevado que o nosso.


É fato que os Estados Unidos e Canadá estão muito à frente do Brasil no IDH, índice que mescla dados de riqueza, alfabetização, educação, esperança de vida, natalidade e outros para verificar o bem-estar da população. 

Na América do Sul, Chile, Uruguai, Argentina têm IDHs superiores ao brasileiro. Na América Central, Cuba tem desempenho melhor que a média brasileira. Oito cidades uruguaias estão na liderança do IDH entre as 13 primeiras localidades latino-americanas. Em Montevidéu, por exemplo, o IDH era de 0,88, em 2007. Em São Paulo e Rio de Janeiro, no mesmo ano, o índice era de 0,833 e 0,832, respectivamente.


 


Podia ser Europa. Mas é América Latina. Chile, o país com maior IDH do continente.

Talvez o fato de olharmos como “modelos de civilização” apenas o outro lado do oceano ou a América do Norte explique a reação de repulsa de algumas pessoas à vinda dos latino-americanos para estudarem em Foz do Iguaçu. Ou talvez seja só uma xenofobia acéfala de quem vive de síndrome de Marquinho e só enxerga como “muitos melhores” os nascidos em berço norte-americano.

Se tivéssemos aqui uma universidade federal para a integração Brasil-Estados Unidos ou Brasil-Suécia, patrocinada da mesma forma pelo governo e fundada pelo mesmo partido (o PT), a gritaria contrária seria a mesma? Acho que todos nós, favoráveis ao projeto da Unila, como eu sou, ou os contrários à instituição, sabemos a resposta. E não precisa muito: basta usar um pouco da dedução, já que informação não é a base dos críticos do projeto.

segunda-feira, março 17, 2014

Porque as mulheres morrem por serem mulheres

Efeito colateral da contemporaneidade, a síndrome do "cheio de opinião" alastra-se pelas redes sociais e outras plataformas. Mesmo distante do rigor científico, as observações empíricas lançadas podem ser positivas em diversos aspectos. Hoje, elas servem como via alternativa aos meios de comunicação tradicional, contribuem para a mobilização popular e ajudam-nos a entender melhor a sociedade, inclusive, em seus aspectos negativos. Não é diferente com os blogs, primeiras plataformas de opinião popularizadas pela internet.

No outro polo, o "lado ruim da coisa", a síndrome do "sabe-tudo" pode nos induzir a conclusões rasas e a nos levar a engrossamos a massa de manobra de interesses diversos. Em ano eleitoral isso é ainda mais evidente (basta ficarmos atentos para montagens diversas circulantes no Facebook).

Quem escreve e se expõe publicamente está fadado a ser julgado pelas mais diversas visões de mundo. E, em um ambiente virtual com conteúdo infindável, sinto-me honrada pela atenção dispensada por alguns leitores, mesmo quando há eventuais críticas. Os embates são parte da democracia. Apenas egocêntricos e ditadores não os toleram.



Ironia mostra o preceito do feminismo. Radical é quem não entende.

Na semana passada, defendi em um trecho do texto sobre o assassinato da estudante que Martina Piazza (no dia 2 de fevereiro) fora morta por ser mulher. Infelizmente neste caso, não há argumento capaz de me convencer do contrário. E não se trata de crença ou militância rasa. Com base de formação no campo da Academia, não sou do tipo que constrói axiomas sem embasamento prévio, embora eu, como você, possamos errar em nossas conclusões. Por isso, o esforço para que elas sejam pautadas por minuciosa pesquisa, e não por paixões ou pela "militância" de estar certo, como se estivéssemos participando de um duelo intectualoide.

Embora no Código Penal brasileiro ainda não haja qualificação para o crime de feminicídio, forma de violência contra o gênero resultante na morte da mulher, o assunto é tema de um projeto de lei, de autoria da senadora Ana Rita (PT-ES) em trâmite no Senado. Caso aprovado, será mais uma tipificação para os homicídios no Brasil.

Para ser considerado feminicídio, é preciso haver três circunstâncias, isoladas ou contínuas. São elas: a relação íntima, de afeto ou parentesco, entre vítima e o agressor; a hipótese de violência sexual, antes ou depois da morte; a mutilação ou desfiguração da vítima, também antes ou depois da morte, associado ao emprego de tortura ou qualquer meio degradante.

Para esclarecer: não se trata de misoginia (ódio ao sexo feminino), mas de uma tipificação para crimes contra mulheres e que são cometidos em virtude do gênero.

Se marcar um encontro, convidar o agressor a adentrar um apartamento consigo - numa evidente relação de confiança - e ser morta em um estrangulamento de tamanha brutalidade que levou à quebra do pescoço da vítima, se isso tudo não se encaixar em nenhum dos itens, aí posso reconsiderar meu "axioma" que Martina foi morta por ser mulher.

Até lá, mantenho minha opinião, ainda que possa ser considerada uma a mais nesse oceano de "achismos". Qualificar como feminicídio crimes como este é uma forma de não colocá-los na vala comum dos homicídios, dispor de dados estatísticos mais contudentes sobre a violência contra a mulher e não esconder essa sujeira embaixo dos nossos tapetes.

Ainda que este seja um Trabalho de Sísifo, continuarei empurrando essa pedra morro acima, na esperança de um mundo melhor para nós, mulheres, anônimas ou não.




(Para entender melhor, recomendo a leitura de "Femicídios" e asmortes de mulheres no Brasil, de Wânia Pasinato, "Feminicídio:quando mulheres são mortas por serem mulheres", de MônicaRibeiro e Ribeiro, ambos disponíveis no Google. O Projeto de Lei 292/2013 pode ser acessado neste link http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=133307&tp=1 e o Mapa da Violência contra a mulher, neste caminho: http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2012_mulheres.php)

segunda-feira, março 10, 2014

Não há nada para celebrar




 Foto de Lalan Bessoni
 
A poucos dias do Dia Internacional da Mulher, o assassinato no domingo (2) da estudante da Unila, Martina Piazza Conde, de 26 anos, trouxe para o universo do tangível o abuso de milhares de mulheres que sofrem caladas e de forma sistemática uma violência motivada pelo simples fato de serem do sexo feminino.


Na morte da universitária, estão impressas de forma implícita a opressão cotidiana, os casos de abuso sexual e outras formas de agressão impostas por uma sociedade patriarcal. Embora não saibamos o motivo – embora eu não acredite em justificativas para o injustificável – cada atitude machista ajuda a tecer a rede da conivência com os maus tratos às mulheres.


Sim, nós somos dotadas de uma estrutura física mais frágil, mas não é somente por isso que terminamos como vítimas fatais em situações como essa. No balaio das “razões sem razão”, entra também a concepção da mulher servil, ou seja, de toda relação de poder construída historicamente do homem sobre a mulher. 


Esses elementos contribuem para engrossar dados alarmantes. Entre 2009 e 2011, o Paraná teve 1.035 femicídios, segundo números da Fundação Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Na ponta do lápis, dá quase uma morte por dia. 



Martina: mulher bonita é a que luta!

Nos números deste ano, estará a morte de Martina para nos lembrar que essa lista é composta de pessoas com rostos, endereços, histórias de vida, amigos queridos. No caso da estudante, associe essa imagem a uma pessoa repleta de vitalidade, de vontade de luta por um mundo melhor e sorrisos. 


Se os números ajudam a refletir sobre esse problema, é na imagem dela que podemos vislumbrar tantas outras vítimas. E não são poucas. 


De acordo com o Portal Iguaçu, foram registrados no ano passado 2.453 boletins de ocorrência envolvendo situações de violência contra a mulher no Estado. No ano anterior, foram 11.240 registros. As informações foram passadas ao site pela Coordenadoria das Delegacias da Mulher do Paraná (Codem).


Sete de cada dez mulheres sofrem algum tipo de violência durante a vida, no mundo. E isso apenas por serem mulheres. Em todo o planeta, uma a cada cinco mulheres será estuprada – e eu sou uma das pessoas incluídas nessa estatística. Há mais risco de uma mulher com idade entre 15 a 44 anos sofrer estupro e violência doméstica a ser acometida por um câncer ou vítima de um acidente de carro, conforme divulgou o Banco Mundial. 


Em junho do ano passado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou um relatório no qual aponta como problema de saúde global com proporções epidêmicas a violência contra a mulher. Infelizmente, a epidemia está próxima de nós. Resta torcer para não haver outros episódios como o da querida Martina. 
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Disk Denúncia da Delegacia de Homicídios Foz – 0800 643 2977

segunda-feira, fevereiro 24, 2014

Que a Ucrânia não seja aqui



 Líder neofascista ucraniano.

No início dos anos de 1990, circulou no centro da minha cidade natal, no interior de São Paulo, um abaixo-assinado de apoio aos movimentos separatistas da Iugoslávia. Não me lembro ao certo porque me interessei pelo tema (eu tinha 12 anos de idade), mas lembro-me de ter ouvido atentamente as instruções dos coletores a respeito da importância do apoio dos brasileiros para a emancipação da Eslovênia, Croácia e Bósnia.

Lembro-me de achar legítima a reivindicação e, embora eu possivelmente estivesse mais preocupada em colecionar fotos da boy band do momento, parecia-me justo defender a autonomia dos países e a democracia. Aqui, havia acompanhado a celebração de minha família nos Diretas Já (mesmo sem entender ao certo o que isso representava), mas o voto direto era um conceito debatido com certa frequência pelos meus tios militantes partidários quando eu mal tinha saído das fraldas. Talvez por isso, a reivindicação dos defensores dos Bálcãs pareceu-me automaticamente justa, embora tão, tão distante de nós aqui no Brasil. 

Passados pouco mais de vinte anos, a Ucrânia, país próximo aos Bálcãs, não me parece tão distante quanto a antiga Iugoslávia no passado. E não é a internet a responsável pela redução dessa proximidade entre nós e os ucranianos. 

A despeito do sofrimento humano em qualquer guerra civil, o que me faz compadecer dos conflitos instaurados naquela nação recentemente é o receio de estarmos muito mais próximos dos ucranianos do que poderíamos pressupor. Pode parecer pessimismo – e é, admito – mas alguns pontos da sociedade brasileira são condizentes com o cenário da Ucrânia pré-conflito.

No artigo “Dossiê Ucrânia: os neonazistas a um passo do poder”, publicado originalmente na Agência Rebelión, o jornalista ucraniano Oleg Yasinsky expõe como as coisas foram ficando fora de controle no país tido como um dos mais pacíficos da região. 

Em crise financeira, alguns protestos começaram a ser deflagrados em ambos países. Guardadas as diferenças entre os dois governos – Brasil e Ucrânia têm líderes muito diferentes – nos dois países os protestos sobre reivindicações de forma legítima, por melhores condições, mas acabaram abarcados por grupos de interesses ainda escusos no Brasil. 

O que é nebuloso no país da Copa, não leva máscara na Ucrânia. Por lá, os protestos contra o governo de direita são encabeçados por grupos de ultradireita extremamente mais violentos, segundo Oleg Yasinsky.“Lamentavelmente, essa ultradireita tem agora cada vez mais aceitação social. Isso acontece porque a ultra-direita age contra um governo corrupto, que praticamente perdeu sua legitimidade frente à maioria dos ucranianos, enquanto uma outra direita, agora uma terceira, a da oposição democrática, a dos contos europeus e prantos por Yulia Timoshenko [líder da oposição ucraniana], não teve mérito e capacidade para encabeçar os protestos populares”, disse o jornalista em seu texto.

Por lá, as coisas ficaram fora de controle – e é esse ponto o mais preocupante. Lembro-me que, em junho do ano passado, a gritaria contrária às bandeiras e partidos políticos nas manifestações “dos vinte centavos”. Um tanto perdido, o governo do Brasil agora estuda restringir oficialmente protestos e proibir uso de máscaras. Em São Paulo, não é segredo algum a truculência da PM nas manifestações também cada vez mais violências e nas quais estão presente os “Black Blocs”, nascidos como anarquistas, mas donos de um discurso cada vez mais reacionário.

Outro jornalista ucraniano, Aleksandr Karpets, no artigo de título sugestivo Quando a ‘Revolução’ muda de rumos, nos dá pista da semelhança entre os dois movimentos: “Antes de 19 de janeiro deste ano, os protestos se limitavam a declarações exaltadas, promessas, ameaças, festa e cantos na Praça da Independência de Kiev, que hoje é midiaticamente conhecida como Euro-Maidan (“maidan” é praça em ucraniano). Os “líderes” estavam preocupados com seus futuros ganhos eleitorais. Dava a impressão de que eles tinham medo de tomar decisões e depois ter que arcar com elas. A massa repetia o refrão delirante de uma “revolução apolítica”.”, relata o jornalista.
 
 
Neste contexto, os grupos dos sem bandeiras, mas não sem ideologia, - os neonazistas- foram ganhando força.  Na Ucrânia, como no Brasil, foi prometida formas não-violentas de protesto como uma “greve geral”. “Ela foi prometida em reiteradas oportunidades, mas nunca se concretizou, por conta da mesma incapacidade organizativa e ideológica dos “líderes” “pró-europeus”, escreveu Aleksandr Karpets. 

Nesse domingo (23 de fevereiro), as redes sociais reportavam um incidente em São Paulo, quando um  motorista avançou sobre um bloco de Carnaval na Vila Madalena, atropelando 20 pessoas. Não bastasse a barbárie do episódio, foliões enfurecidos teriam dado resposta à mesma altura, depredando o carro supostamente blindado do agressor e – pasmem – partindo para uma tentativa de estupro da namorada do atropelador. 

E este não foi o primeiro caso de “justiça com as próprias mãos”. Nos últimos dez dias, uma onda de pseudojusticeiros espancaram e amarraram suspeitos de crime (até ser julgado pela Justiça formal não posso chama-los de bandidos) em Mato Grosso, Santa Catarina, Piauí (amarrado a formigueiro), Natal, Rio de Janeiro e no Paraná.

Parece que a lógica olho por olho, dente por dente, começa a ficar legitimada na classe média brasileira. Que qualquer semelhança entre a situação entre Ucrânia e Brasil seja mera coincidência.

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segunda-feira, janeiro 27, 2014

Grammy premia autores de música antiostentação



Em tempos de rolezinho marcados pela exaltação aos bens de consumo da elite, compositores de canções que vão na contramão da música da ostentação - popularizada nos últimos anos pela indústria do entretenimento - levaram para casa um total de quatro Grammys, o maior prêmio da música norte-americana.

Além das estatuetas recém-adquiridas, o duo de rap Macklemore & Ryan Lewis e a neozelandesa Lorde têm em comum  canções que exaltam a simplicidade e a antiostentação.

ThriftShop (em português, "Brechó"), deu a Macklemore & Ryan Lewis o prêmio de  melhor perfomance de rap. O álbum "The Heist" - no qual está Thrift Shop - foi consagrado como o melhor do gênero.

Na letra, Thrift Shop faz pouco caso dos usuários de marcas famosas e do gasto despendido com roupas. "Cinquenta dólares por uma camiseta? / Chamo isso de ser enganado e abusado, droga/ Chamo isso de ser enganado por um negócio/ Essa camiseta é muito cara e ter uma igual a de outras seis outras pessoas nessa boate não dá / Olhe só, venha dar uma olhada através do meu telescópio. Está tentando pegar garotas por causa de uma marca?/ Cara, então você não pegará", canta a dupla.

Fenômeno semelhante é criticado pelo single "Royals" (Realeza, em português)da cantora neozelandesa Lorde. A música deu à jovem de 17 anos duas estatuetas: a de melhor canção do ano e a melhor apresentação pop solo.

 Lorde: da realeza ou da simplicidade?

Na canção, a jovem de 17 anos desconstrói o mundo de luxo popularizado nos últimos anos no entretenimento pop, como um desabafo de quem está cansada de ter como busca os bens de consumo.
"Mas todo mundo só fala de champanhe, carrões/ Diamantes em seus relógios/ Jatinhos, ilhas, tigres em coleiras de ouro/ Nós não ligamos /Não estamos envolvidos no seu caso amoroso", diz a letra da canção premiada, que segue com uma afirmação: "E nunca seremos realezas/ Isso não corre no nosso sangue. Esse tipo de luxo não é pra gente/ Nós desejamos outro tipo de agitação".

A popularidade de ambas canções apontaria um novo caminho para a música, pela busca do mundo mais simples, ou talvez a esta bandeira anticonsumista seja apenas mais uma apropriação da indústria do reconhecimento por esse mercado?
 


Música antiostentatção, ouro no peito. A nova cara do mainstream.
 
  
Lembremos que esta indústria é a mesma que premia álbuns como “Watch the Throne”, de JayZ e Kanye West - saturada por referências à riqueza em letras que exaltam marcas como a francesa Hermés (no “Rap de luxo") e Gucci. Recordemos ainda que a cantora Lorde - nascida Ella Maria Lani Yelich-O'Connor - assumiu o nome artístico supostamente por admirar a realeza que ela critica em Royals. E que as correntes grossas de ouro também estejam no peito de Macklemore.
Estratégia de marketing ou saturação da sociedade de consumo, as músicas premiadas pelo Grammy apontam que, talvez, os rolezinhos e os reis da balada não sejam mais populares no mainstream em um futuro próximo. Como cantou John Lennon em Imagine, “você pode dizer que eu sou um sonhador. Mas eu não sou o único”. Ao menos neste ano, o júri do Grammy parece concordar.