Pintadas a mão por Stela, pessoa estranha porém bem-humorada e insistente na tentativa de imprimir cores em seu mundinho cotidiano mas raramente monocromático.
segunda-feira, janeiro 05, 2009
Escolhas
Acendeu um cigarro e olhou à direita para fitar a paisagem. Mesmo nesses dias cinzentos, o verde vale que começava do outro lado da rua mostrava-se extremamente vibrante. Era verão e as chuvas fortes que castigavam outras regiões da cidade não abalavam as árvores do outro lado da rua. E mesmo as de copa menos farta pareciam passar incólumes aos raios das tempestades que atingiam diariamente essas bandas de cá.
De pernas cruzadas, ela balançava o pé esquerdo apressadamente. Tique habitual a qualquer ansioso sem ansiolíticos. Olhou novamente para o horizonte delineado pelas montanhas, mas a imagem ficara turva em função das gotas da chuva que se tornava mais espessa e atingia o vidro do Café onde ela o esperava.
Abaixou os olhos e quando olhou novamente pela vidraça viu-o entrando pela porta de madeira. Sorriram. Ele se curvara para beijá-la no rosto. Antes mesmo que acomodasse na cadeira pesada de madeira a frente dela, fora indagado de súbito, sem um 'boa tarde' ou outras formalidades usadas para introduzir qualquer conversa.
- Eu sou 'escolhível'?
- 'Escolhível'?, respondeu ele com o sorriso largo que lhe faziam sumir a cor dos olhos azuis, estranhando não só a pergunta, mas por imaginar uma mistura de escolha e sofrível.
- É, você me escolheria?
A dúvida pairava em sua mente há dias desde o momento em que ele revelara sua indisposição para batalhas amorosas. "Nunca escolho quem eu quero, sempre sou escolhido por uma terceira pessoa, que não me interessava em princípio".
A declaração passara em branco no momento da conversa anterior, mas depois soava como um desafio. "As mulheres sempre escolhem. Invariavelmente", havia dito quando o assunto veio à tona na primeira vez.
Mas, posteriormente, uma série de motivos lhe causou o incômodo comparável aquele deixado pelo refluxo gástrico na garganta. Não por ele, mas por ela mesma. A afirmação daquele homem abalara algo aparentemente sólido nela. Passou horas pensando nos seus relacionamentos –os mais revelantes, pelo menos— na tentativa de decifrar em qual grupo de pessoas estava. Caça ou caçadores. Escolhidos (que ela preferia pensar como ‘escolhíveis’, mesmo contrariando a gramática formal) ou selecionadores?
Sim, havia sido eleita algumas vezes. Poucas, comparadas ao "sempre sou escolhido" proferido por aquele homem. Em geral, dela partiam os primeiros olhares e mesmo quando seu interlocutor pensava estar à frente da iniciativa (e partir para o primeiro toque físico) era ela quem o chamava para si, “talvez pela força do pensamento”, como costumava pensar.
Mas o maior incômodo advinha de uma constatação tida 'a posteriori' naquela conversa. Ela descobriu que o achava com “alto potencial para escolha”, pela sua companhia agradável e perspicácia.
Ela começava a gostar de coisas singelas nele, como a forma de seus dentes mais pontiagudos e não necessariamente alinhados –mais evidentes quando sorria.
Às vezes, ele parecia um menino pelo conjunto de sua gestualidade aliado a sua brincadeira com a fonética --trocadilhos ora literatos, ora infantis.
Gostava de sua pele pintada das mãos ao pescoço e do constrate do cachecol preto com seus cabelos vermelhos. Ele tinha um jeito bonito de encostar no carro, embora fosse menos elegante ao fumar do que pressupunha. Todos esses fatores transformavam-no em um ser 'escolhível', pensava. E chegara a essa conclusão apenas depois de racionalizar a incômoda conversa inicial. Por isso mesmo clamava em descobrir se reunia fatores capazes de colocá-la no mesmo grupo: o dos 'escolhíveis'.
Uma lembrança recente interrompeu o fluxo de pensamento que a levava para fora de si, perto dele. No Natal havia recebido um beijo surpresa de outra pessoa.
Acolheu, por alguns segundos e meio envergonhada, a boca macia, quente e úmida de Cabernet Sauvignon daquele que a tinha escolhido. Nunca tinha pensado em beijá-lo antes, desde que se tornaram amigos, mas a estranheza foi substituída por um sentimento curioso, de cumplicidade e segredo, muito embora tal fato não precisasse ser calado. Não fora o início de um romance, nem o fim de uma amizade. Fora algo físico, tanto que ela levara os dedos indicador e médio aos lábios depois do ocorrido e fechara os olhos por um tempo até maior do que o tempo pelo qual as línguas se tocaram. Precisava tocar-se para ter certeza da realização. Fora como a sensação do primeiro beijo, pensou.
Mas as festas de fim de ano já haviam passado e a boca que estava a sua frente não era a mesma do toque inesperado e os olhos ali não eram verdes, mas azuis. O mesmo azul quase oculto pelo movimento dos músculos da sua face provocado pelo sorriso ao ser questionado.
Uma enxurrada de pensamentos surgiam enquanto ela esperava as palavras dele brotarem, mas sua história recente -passada em frames tão rápidos na sua memória quanto inserções subliminares de filmes- tivessem lhe trazido uma autoresposta.
“Todo mundo é ‘escolhível’, independentemente de reciprocidade”, ela concluíra em pensamento. Sorriu e acendeu um novo cigarro. Lá fora, a chuva continuava a atingir o verde vale.
Stela, sob licença poética. Porque nem tudo que é autobiográfico é biografia.
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8 comentários:
Na minha estante todos os discos são "escolhíveis". Um dia acabo os tocando.
=)
é reconfortante.
somos escolhíveis, amigo. didn´t we?
Eu conheço uma personagem que se dispõe nessa leva de raciocínio, onde o poder da escolha ou de ser escolhido talvez não de a ele o direito de dizer de forma elegante que qualquer relação com a obra teria sido mera coincidência...selmer or remles...beijosss...
esse texto foi muito, momento que passo agora.
Como diria o Burro do Shrek no menu do DVD: "ei , me escolhe , me escolhe!". É engraçado essa coisa de escolher. Estranhamente , quando eu escolho as coisas costumam não dar certo. XD
Beijo Stela!
Ah...é tão audio visual, tão lindo....que eu não sei o que dizer...nem tenho vontade de argumentar....só dizer parabéns e obrigado por compartilhar seu pensamentos conosco!
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