
Nunca fui à França, mas dizem ser comum cultivar pequenos ‘relicários’ com lembranças da vida logo à entrada das casas.
Quando adolescente, eu fazia o mesmo com diários: era uma cultuação quase religiosa a minha própria história. Era uma febre, à época, colar de tudo nas agendas –de ingressos de cinema nos extintos cine Rio Branco e Rosário, papéis de bala, passaportes do PlayCenter. Houve um tempo em que fiquei apaixonada por um fumante –e até as bitucas de cigarro do ser amado platonicamente deixavam a agenda cor-de-rosa embuída de um odor fétido.
Na mesma época, eu costumava escrever cartas longas pra amigos distantes. Também naquele período o critério de distância era diverso de hoje –qualquer 20 quilômetros já significavam uma barreira intransponível entre eu e meus queridos amigos de terras ‘longíquas’.
Esse hábito fora adquirido desde cedo, quando eu escrevia para as colunas infantis entituladas ‘faça amigos’ ou coisa parecida dos jornais como Estadão e Folha. Para ilustrar as cartinhas, eu recortava revistas e gibis.
A gente costuma pensar, quando criança, que mudaremos em essência quando adultos. Quando adultos, percebemos que o que fomos será sempre o que é, assim, no presente simples. E vamos conjugando a vida sem saudosismo, mas no pretérito perfeito –cujo significado traduz uma ação que começou no passado e ainda não foi concluída. Passara, mas continuara. Assim sou eu.
Mário Quintana traduz essa idéia em uma frase que adoro: “as coisas que não conseguem ser olvidadas continuam acontecendo. Sentimo-las fora de tempo...”. E por aí vai.
Percebo claramente hoje essa infância na minha maneira de vivenciar o mundo e de colecionar recortes: fazendo cut-up (mesmo sem conhecimento prévio de William Burroghs) do dia-a-dia.
Esses recortes viram artesanato que costumo dar para amigos e outros queridos. São relicários onde emprego mais que papel, madeira e outras bobagens –são pedacinhos da minha vida, do tempo que dediquei na ação de amor à pessoa.
Assim como os franceses, eu também cultuo relicários. No meu caso, eles só têm motivo de ser quando faço o que mais gosto: compartilhá-los, como devem ser as alegrias dessa vida.
Stela Guimarães
22 de julho de 2008