quinta-feira, março 05, 2009

Liberdade sitiada na livraria. Ou, sobre como escolher um presente existencialista




“O homem é condenado a ser livre”. Pude verificar in loco essa máxima de Jean-Paul Sartre a partir de uma atividade simples: escolher um presente de aniversário. A liberdade pressupõe uma responsabilidade pelos atos e ficou difícil escolher --e ser livre para tal-- sem o medo de uma gafe.

Primeiro pensei no tipo de presente mais apropriado ao aniversariante. Cigarrilhas trés chic, vinhos chilenos ou mesmo um livro sobre a arte da enologia (esse custava R$ 79) e outro com todas canções do Chico (o Buarque, não o Anísio) passaram pelas minhas mãos. Porém, mesmo aparentemente livre para tal escolha, estou sob as amarras do sistema capitalista. Logo, se escolhesse um presente mais erudito e digno, correria o risco de não honrar com o pagamento do meu condomínio no mês.

Procurei então um presentinho, e não um preseeeeente. Uma lembrancinha, como dizem por aí. O importante é agradar o interlocutor, que pelo perfil, tem um quê de existencialista e por esse mesmo motivo, podia dizer-me abertamente um “ah, não gostei”, sem magoar aquela que o presenteou.

Depois de uns 40 minutos olhando na prateleira de uma livraria de pequeno porte (e com uma vasta coleção de artigos religiosos) de minha cidade, chega a vendedora com o tradicional: posso ajudar?
Respondo com o básico, porém educado, “não, obrigada”. Para mim, não sou eu quem escolhe os livros, são eles que vêm pra minhas mãos. E por esse motivo, odeio ter minha liberdade (sartriana ou não) tolida pelos vendedores de livraria.
Digo que é para um aniversariante que completa 35 anos amanhã. E lá vem ela me indicar a prateleira de... auto-ajuda. Por Deus ou Deeprak Chopra! Eu não compraria auto-ajuda nem pra minha mãe, que gosta do gênero.
Okay, sei se tratar de preconceito, mas prefiro dar um livro do Paulo Coelho a presentear alguém com “Os sete hábitos das pessoas muito eficazes”.

Com a mulher na minha cola, sigo lentamente procurando algo. Foi nessa hora que a antologia do Chico Buarque me saltou aos olhos na prateleira. Logo abaixo, no caos das estantes mal arrumadas, “Entre quatro paredes”, de Jean-Paul Sartre, parece me fitar.

Abro o exemplar e a primeira frase que leio, na orelha do livro, é: “O inferno são os outros”. Lançado em 1945, "Entre quatro paredes" é uma peça de um ato único, com três personagens que passariam a eternidade trancafiados no inferno. O lugar está distante da imagem prevista pelo senso comum: trata-se de uma sala permanentemente iluminada e sem janelas. O inferno, para ele, é a necessidade de tolerar um ao outro. Uma das personagens é Estelle (coincidentemente, Stela, em francês, e achei 'temático' meu nome constar na obra, ainda que indiretamente e dando voz à fútil Estelle).

Por um segundo, penso em desistir e comprar "1984" de George Orwell. Mas aí me lembro de Sartre e do 'lance' da gente ser a totalidade do que ainda não tem, "do que poderia ter". Desisto de levar Orwell e volto à peça.

Bingo! Escolho, pago e tiro a vendedora do meu encalço. Não terei que aturar mais o controle da minha varredura nas prateleiras. Liberdade!



Stela
5/3/2009, às 18h49

(Nesse momento faz uma luz tão incrivelmente vermelha no céu da minha terra que todas as casas parecem pintadas de rosa. Bonito mesmo).

4 comentários:

Bruno Capelas disse...

Hahahahaha. Normalmente , a minha escolha de presente é bem simples. Se eu conheço bem a pessoa , um livro ou um disco ou (no máximo!) uma camiseta de banda funcionam e não estouram o orçamento (paterno!). Se não , "manhê , compra pa ieu?"

Beijo!

Stela disse...

bom, isso era pra ser uma dedicatória no presente. mas aí fui escrevendo, escrevendo. e virou esse lixo aí! hahahaha

desse jeito vão achar que eu ando lendo nieztsche e não sartre! rs

André disse...

Divagar sobre presentes é gostoso e sua escolha de palavras foi tão agradável quanto.

:)

E XXXtela está em todos os lugares!

Anônimo disse...

Os dois livros são ótimos!!!!!!!!
Tenho os dois e é difícil escolher ql é o melhor (se bem que na minha humilde opinião, não existe *melhor* na arte)
Mas se a pessoa adora literatura, adorará o seu presente. =)
Sempre tenho vontade de usar essa frase *o inferno são os outros*, mas como não conheço ninguém que tenha lido, sempre tenho receios de ser mal interpretada.