domingo, fevereiro 17, 2008

Onde se encontra a (des)igualdade




Não são nos abraços dos amigos e nem nas multidões das festas que eu me sinto igual ao outro. Meu contato com a realidade --que insistimos em fugir-- é nos ponto de ônibus. Naqueles minutos que passo em meio à massa da qual faço parte, com quem divido os lugares em ônibus tantas vezes cheios e onde minha expressão facial não me diferencia de ninguém: como a de outros, é a de cansaço após a jornada de tantas horas de trabalho.

A freqüência neste espaço tem reduzido na minha vida graças a comodidade ou preguiça, talvez, que a invenção de Henri Ford nos deu (e à atmosfera contribuo com o monóxido de carbono enquanto critico Bush pela ausência no Protocolo de Kyoto).

Mendigos, subempregados e pouquíssimos bem remunerados dão cor à plataformas das coberturas vermelhas dos pontos desta cidade. Atenta, vou colecionando histórias que ouço como se fossem um pouco minhas. A última delas veio de uma diarista na semana passada.

Enquanto escondíamo-nos da chuva que insiste em cair após às 17h, ela contava para uma 'amiga' cozinheira como mantém a boa forma (de fato, capaz de causar inveja às peruas das academias e dos botox):

-- Eu ando muito, mais de uma hora direto, dona Jacira. Vou até o serviço à pé porque com saúde a gente não brinca. Ainda mais agora que o Valtencir foi embora com aquela outra. Quero ficar bem bonita pra quando ele voltar. Porque ele volta, isso eu sei.

Fiquei imaginando a rotina dessa mulher que certamente abastece sua caminhada com a lembrança do bem-amado. E filosofo comigo mesma: "o amor é igual entre todos. Entra na nossa cabeça feito piolho insistente em cabelo de criança", penso eu. "Não importa quem povoe a sua: andamos todos por aí com um monte de gente pendurada em nós".

O pensamento poético só é interrompido pela presença de um andarilho que circulava em volta do pseudocoreto, sorridente em seu universo paralelo.
Logo percebo que não se trata do andarilho clássico: faltava-lhe a garrafa de pinga e algo mais, que costumamos atribuir no senso comum da indiferença a essas pessoas. Provavelmente ele sofra de alguma deficiência neurológica, concluo enquanto questiono-me: "Por que não foi amparado? Se foi, porque deixou de ser? O que gente como eu pode fazer por essas pessoas, além de lhes dar um saco com uvas insuficientes para matar a fome de um dia (como eu fiz)?".

Sobra-me uma ressaca moral e uma sensação de insuficiência --menos pela demora no coletivo e mais pelo soco de realidade no estômago mal (ou bem) acostumado. Pois neste lugar aqueles que se sentem diferentes realmente encontram seus iguais.

5 comentários:

André disse...

Sua reflexão sobre personagens num ponto de ônibus está linda!

Me abriu um sorriso nessa quarta de trampo!

Stela Guimarães disse...

Hoje vi uma cena bem legal em um ponto de ônibus quando chegava no trabalho. Em frente à caixa de som de um açougue, uma mulher de chapéu branco (igual ao que usei no Carnaval) dançava um pagodinhoe interagia às 8h desta quarta-feira chuvosa. Também ganhei um sorriso por conta da cena logo pela manhã!
:D

Anônimo disse...

Adorável Stelinha,
Lindo texto.
Eu ando por aí com a cabeça bem cheia também.
Beijo,
Cris

Unknown disse...

Poxa, eu gosto tanto das palavras que vc usa, da forma que vc constroi as frases. Uma arquitetura de texto peculiar!
E claro, sobre o seu olhar.
Sobre o assunto do texto, se eu for divagar, dará outro texto aqui, mas muito mal sucedido.
Então me resta elogia-la. Lindo, Stela!

Unknown disse...

eu tenho um problema terrível: fico imaginando a biografia das pessoas, em situações como estas... em 15 minutos invento histórias para todos! :)

beijos, darling.